Toda história é feita por imagens. Assim como toda imagem é feita com história. Imagens de quem fez e/ou não fez a história; história de quem recebeu e/ou não recebeu as imagens; Imagens de quem viu e/ou não viu a história; história de quem contou e/ou não contou as imagens; Imagens não dizem nada, mas gritam atordosamente.



Bandidos

Lampião


O fascínio duradouro pela figura do fora da lei que “tira dos ricos para dar aos pobres” é um dos
temas de “Bandidos” (editora Paz e Terra, tradução de Donaldson M.
Garschagen), estudo clássico do historiador britânico Eric Hobsbawm,
publicado pela primeira vez em 1969 e relançado agora no Brasil em
edição revista pelo autor, enriquecida por ilustrações e textos
inéditos.

Com o livro, Hobsbawm fundou um novo campo da
historiografia, o “banditismo social”, que investiga a atuação de
indivíduos ou grupos que, apesar de violar as leis locais, não são
rejeitados por suas comunidades, pois são vistos como forças sociais
positivas. Proscritos pelas autoridades, os “bandidos sociais” têm seus
feitos eternizados em lendas populares, canções e poemas.

Em entrevista ao GLOBO por email, o historiador, que completa 93 anos na
quarta-feira, explica as diferenças entre “bandidos sociais” e “bandidos
normais” (que pregam “a rejeição deliberada de toda lei ou valor moral
que não os seus próprios”). Entre os casos mais famosos de “banditismo
social”, Hobsbawm destaca (além de Robin Hood e de exemplos em Itália,
México, Rússia e China) os cangaceiros liderados por Lampião, cujas
façanhas “se espalharam do Nordeste para o resto do Brasil e
eventualmente se tornaram parte do mito nacional da identidade
brasileira”, segundo ele.

Historiador de orientação marxista e
autor de “Era dos extremos: o breve século XX: 1914 — 1991” (Companhia
das Letras), Hobsbawm avalia que, em muitos casos, os “bandidos sociais”
desempenham o papel de “compensar a impotência dos pobres numa
sociedade de dominação de classes”. Entre as inúmeras lendas em torno de
foras da lei reunidas em “Bandidos”, destaca como sua favorita a do
cossaco Stenka Razin, que desencadeou uma rebelião contra o czar da
Rússia nas décadas de 1660 e 1670 e é lembrado até hoje numa “linda
melodia lenta que faz parte da herança cultural de todos os russos”.
O GLOBO: Como o senhor define um “bandido social”? Quais são as diferenças entre
eles e os “bandidos normais”?
ERIC HOBSBAWM: Em sociedades
tradicionais, criminosos associais ou antissociais (“os degenerados”)
geralmente vinham de grupos de baixa condição, como as profissões
“desonrosas” ou “não respeitáveis”, ou de grupos que não se encaixavam
na sociedade dita “normal”, como ciganos e judeus, por exemplo. Estes
grupos viam a si mesmos, ou eram vistos, como exteriores ao universo
moral da sociedade “normal”, mas conviviam com ela, constituindo um
submundo marginal e impotente. Em casos especiais, como em Estados mais
fracos, grupos que não pertenciam à classe dominante conseguiam formar
“antissociedades” com sua própria força — a máfia siciliana é um bom
exemplo. Nela, assim como na versão americana da máfia, fica evidente a
rejeição deliberada de toda lei ou valor moral que não os seus próprios,
algo bem retratado em “Os bons companheiros” (1990), de Martin
Scorsese. Já os “bandidos sociais”, a meu ver, eram pessoas,
principalmente em sociedades rurais, que violavam a lei oficial mas não
eram vistas como exteriores à sociedade “normal” e às vezes eram até
vistas como elementos positivos nela. Ao contrário da máfia siciliana,
que acabou por matá-lo, o bandido (Salvatore) Giuliano, que teve seu
apogeu logo após a Segunda Guerra Mundial, era visto até por seus
inimigos políticos, os comunistas, como “um autêntico filho do povo da
Sicília” e “alguém amado pelo povo e cercado de simpatia, admiração,
respeito e temor”.

Quando Giuliano cometeu um massacre contra
inocentes na Sicília em 1947 — incidente capturado vividamente no filme
“Salvatore Giuliano” (1962), de Francesco Rossi —, ninguém acreditava
que ele pudesse ter feito aquilo.

O senhor aponta três formas de “banditismo social”: o “ladrão
nobre”, o “combatente” e o “vingador”. Quais são suas principais
características?
Quer o “ladrão nobre” do tipo Robin Hood
exista (acredito que sim, em raras ocasiões) ou não, as crenças
populares sobre ele são quase universais na Europa e nas Américas.

Ele“tira dos ricos para dar aos pobres, faz justiça, mata só por
necessidade, é protegido pelo povo e só pode ser pego se alguém o trai”,
dizem. Chamo de “combatentes” ou “haiduks” as forças guerrilheiras
baseadas em grupos de bandidos, que tiveram papel importante em
revoluções e guerras de libertação, sobretudo no Leste Europeu, sul da
Itália e China. E vejo como “vingadores” os bandidos que alcançaram
popularidade e fama por seu poder, sem que ninguém esperasse deles
serviços positivos à população. A função dos bandidos “vingadores” é
compensar a impotência dos pobres numa sociedade de dominação de
classes.

O senhor inclui o caso de Lampião no capítulo sobre bandidos
sociais “vingadores” e escreve que ele “foi e ainda é um herói para sua
gente, mas um herói ambíguo. (...) Não obstante, apesar de um herói,
Lampião não era um herói bom”. O que o atraiu no caso dos cangaceiros
brasileiros?
O que me interessou no caso dos cangaceiros
brasileiros foi, primeiro, a extensão do fenômeno, antes do seu
declínio, nos anos 40. Também me chamou a atenção a relação entre os
bandidos e o universo moral popular, como se nota na ligação entre
Lampião e Padre Cícero, por exemplo. Além disso, é notável a forma como
suas histórias se espalharam do Nordeste para o resto do Brasil e
eventualmente se tornaram parte do mito nacional da identidade
brasileira.


O senhor escreve que “bandidos sociais” desafiam a ordem
estabelecida de uma sociedade.Até que ponto eles têm influência
política em mudanças sociais? Poderia dar exemplos de “bandidos sociais”
que tiveram esse tipo de influência?
O “ladrão nobre”
clássico, seja realidade ou mito, não “desafia a ordem estabelecida de
uma sociedade”, mas procura corrigir suas injustiças — pequenas
injustiças, na maioria dos casos. Grupos de bandidos podem influenciar
mudanças sociais e já fizeram isso em condições especiais, como no
colapso do poder de um Estado, especialmente se o território dos
bandidos está próximo dos centros de poder, como durante a revolução
contra Porfírio Díaz no México.

Na China Imperial, a multiplicação dos grupos de bandidos era vista como sintoma do colapso
do Estado e da iminência de uma nova dinastia.

Quais são as condições históricas que favorecem a ascensão do
“banditismo social”? É um fenômeno especificamente rural ou
também existe em áreas urbanas?
O “banditismo social” existe em
sociedades de classe onde o controle do Estado sobre o que se passa em
seu território está dividido ou enfraquecido. No passado, era um
fenômeno majoritariamente rural. Era mais comum em regiões onde um
número substancial de jovens era supérfluo para a economia local. Não
consigo pensar em um só bandido social urbano, m a s c é l e b r e s c r
i m i n o sos/gângsteres às vezes geram mitos que depois são
apropriados por intelectuais, como o MacHeath da “Ópera dos mendigos”
(1728), de John Gay, que vira Mack the Knife na “Ópera dos três vinténs”
(1928), de Brecht.
Não sei o que a maioria das pessoas nas grandes cidades modernas pensa sobre as gangues locais que detêm algum
poder e tentam se tornar populares de formas “modernas”, ou seja,
patrocinando esportes ou escolas de samba. Embora obviamente tenham uma
função social, eu não diria que são “bandidos sociais” no sentido que
emprego em meu livro.


Embora considere o “banditismo social” um fenômeno do
passado, no prefácio da nova edição o senhor nota que o declínio do
poder do Estado em muitas partes do mundo lembra as condições que
favoreceram o banditismo epidêmico (e até endêmico). Pode se falar em
“banditismo social” hoje?
A desintegração do poder do Estado,
ou a demonstração de sua relativa fraqueza, certamente favorece a
ascensão do banditismo. Se há equivalentes ao banditismo social hoje,
eles provavelmente têm mais consciência política do que no passado.
Poderíamos dizer que na Colômbia as Farc (Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia), mesmo não tendo mais esperança de alcançar seus objetivos
nacionais, continuam a operar essencialmente como uma força de
banditismo socialmente positivo em suas áreas.


Mesmo sendo um fenômeno do passado, o “banditismo social”
sobrevive em inúmeras lendas populares e mitos, como se nota pelo
sucesso de público da nova versão cinematográfica de “Robin Hood”. Por
que esses personagens continuam a nos fascinar?
O mito do “bandido social” sobrevive, antes de mais nada, porque continuamos a
viver em uma sociedade injusta na qual a maioria das pessoas tem pouco
ou nenhum poder. Além disso, são mitos heroicos, e nós adoramos os
heróis. Desde o início, eles foram apropriados por aqueles que criam o
corpus das canções, da literatura nacional, da iconografia e, no mundo
contemporâneo, do cinema e da televisão.


Em “Bandidos”, o senhor reuniu um grande número de canções,
poemas e contos folclóricos sobre foras da lei.Qual é seu
favorito?
Meu favorito é “Stenka Razin”, sobre um bandido
cossaco que desencadeou uma rebelião contra o czar da Rússia nas décadas
de 1660 e 1670 (a letra da canção foi escrita por Dmitri Sadovnikov em
1883). É uma linda melodia lenta que faz parte da herança cultural de todos os russos.

Recolhido do site: http://lolonel.blogspot.com/2010/06/herois-marginais-eric-hobsbawm-em-o.html