Toda história é feita por imagens. Assim como toda imagem é feita com história. Imagens de quem fez e/ou não fez a história; história de quem recebeu e/ou não recebeu as imagens; Imagens de quem viu e/ou não viu a história; história de quem contou e/ou não contou as imagens; Imagens não dizem nada, mas gritam atordosamente.



Revolução Neolítica



De caçador a criador, de coletor a agricultor.

Grupos humanos sofreram essa transformação em momentos diferentes, com intensidade diversa, em diferentes locais do mundo.
Até há pouco tempo, sob a influência do evolucionismo e de um marxismo mal digerido, descreviam-se essas passagens como necessárias e positivas. Hoje já se discute, sob a ótica da antropologia, se a felicidade de um grupo depende do gado confinado e da terra domada. Freqüentemente imaginamos ficar o homem mais tranqüilo por ter uma plantação que lhe pertença em contraste com o "selvagem coletor" que tem que sair "procurando" raízes ou frutos. Na verdade, é de se acreditar que, na cabeça do coletor, raízes e frutas lá estão para serem colhidas e não como um acidente, uma eventualidade. O domínio que os coletores tinham do seu ambiente lhes dava um grau de segurança bastante grande para saberem, em determinadas épocas do ano, quais os locais que ofereciam determinados alimentos.
Autores como Pierre Clastres chamam a atenção para mitos que tomaram corpo pela repetição e não pela evidência. Um deles é o de que, necessariamente, a coleta e a caça seriam atividades primitivas porque inseguras, enquanto a agricultura e a criação engendrariam forte sentimento de segurança material. Como todas as falácias, esta é uma meia verdade, uma vez que a agricultura, enquanto atividade do homem na tentativa de submeter a natureza, corre riscos naturais como secas, pragas e enchentes. Por se constituir em riqueza concentrada, a agricultura atraía a cobiça de vizinhos mais preocupados em atividades de guerra do que de organização agrícola. Já um grupo de coletores vivendo em simbiose com a natureza - ou em parasitos e, como diria algum aluno maldoso - poderia ter uma certeza até maior de sua sobrevivência.
O que estamos questionando - fique bem claro - é o caráter necessário e positivo da passagem de um tipo de organização social "primitivo" para outro tipo de organização social mais evoluído. Parece que essas transformações ocorrem em situações concretas que precisam ser estudadas particularmente.
Não está em discussão - porque é uma evidência - a importância, o significado histórico das transições, onde elas de fato ocorreram. O que não se pode é, simplesmente, atribuir ao "primitivismo" de um grupo, a seu caráter de "pré-civilizado", a não ocorrência da passagem de coletor a agricultor.

 A revolução agrícola

Pelos conhecimentos atuais supõe-se que a primeira atividade agrícola tenha ocorrido na região de Jericó, na Cisjordânia (hoje sob a tutela de Israel), num grande oásis junto ao mar Morto, há cerca de 10 mil anos. A crença no Egito como berço da agricultura já não tem tantos seguidores. A dificuldade em estabelecer uma certeza a este respeito decorre da inexistência de documentação indiscutível: os trigais desaparecem com o tempo. Só através de comprovações indiretas - ruínas arqueológicas de silos, onde os cereais eram armazenados - é que se pode tentar datar o início de uma atividade agrícola sistemática.
De qualquer forma, através de difusão ou de movimentos independentes, supõe-se que o fenômeno tenha surgido também na índia (há 8 mil anos), na China (7 mil), na Europa (6.500), na África Tropical (5 mil) e nas Américas (4.500).
Os produtos cultivados variavam de região para região, com a natural predominância de espécies nativas, como os cereais (trigo e cevada), o milho, raízes (batata-doce e mandioca) e o arroz, principalmente. Uma vez iniciada a atividade, o homem foi aprendendo a selecionar as melhores plantas para a semeadura e a promover o enxerto de variedades, de modo a produzir grãos maiores e mais nutritivos do que os selvagens.
Por que se fala em revolução agrícola? Porque o impacto da nova atividade na história do homem foi enorme. E não se trata apenas de mera questão acadêmica, mas de algo muito real e palpável como o próprio número de seres humanos sobre a face da Terra.
De fato, nos sistemas de caça e coleta estabelece-se um controle demográfico resultante da limitação da oferta de alimentos. Não é devido a que não existam alimentos na natureza, mas devi
do a que sua obtenção torna-se extremamente mais complicada para grandes grupos (como já vimos em capítulo anterior).
Além disso, o caçador e o coletor não podem chegar ao extremo de dizimar suas reservas alimentares (animal ou vegetal) sob pena de prejudicar a reposição ou reprodução; a técnica de caça sendo levada para além de certos limites pode criar um desequilíbrio ambiental. Nós, "civilizados", sabemos disso, pois já conseguimos destruir raças e espécies inteiras de animais, graças a técnicas sofisticadas de caça. Viver em simbiose com a natureza significa, exatamente, respeitá-la.
Há um outro fator que determinava o controle populacional: em grupos de caçadores e coletores, crianças pequenas constituem empecilhos tanto para a fácil locomoção da tribo (que precisa, como já vimos, ter grande mobilidade) como para a própria obtenção do alimento. Elas não podiam caçar e atrapalhavam as mães nas longas caminhadas que precisavam ser feitas para a busca de raízes, caminhadas tanto maiores quanto maior fosse o grupo e mais tempo estivesse acampado no mesmo local.

A “primeira explosão demográfica”

Já na agricultura, a coisa mudava de figura. Mesmo quando transumante, o grupo agrícola tinha que se fixar num local o tempo suficiente para que sua plantação produzisse ao menos uma vez. A área plantada ficava bem próxima ao acampamento, propiciando trabalho com menos locomoção por parte das mulheres. De resto, crianças relativamente pequenas eram utilizadas pelo grupo de maneira a se constituírem em força de trabalho. Locomovendo-se menos, usando as crianças para a agricultura e não tendo limites tão rígidos no suprimento alimentar, os homens passam a se reproduzir mais, causando um crescimento demográfico notável.
Com o advento da agricultura, os grupos podem ser maiores, desde que dentro de limites estabelecidos pela fertilidade do solo, quantidade de terra disponível e estrutura organizacional da tribo. Quando o crescimento do grupo entrava em contradição com qualquer um desses fatores, ocorria uma cissiparidade, procurando a tribo derivada - e às vezes até a de origem - outro local. Este processo intenso de subdivisões e deslocamentos iria provocar uma onda de difusão da agricultura e da atividade pastoril.
Acredita-se, portanto, que durante muito tempo a atividade agrícola não fixou em definitivo o homem ao solo; apenas o deixou mais sedentário do que quando coletor e caçador.
A transumância foi uma característica importante do início da revolução agrícola. E, por conseqüência, a difusão cultural também caracterizou essa revolução: podemos imaginar inúmeros grupos reproduzindo-se e subdividindo-se, plantando e criando, invadindo espaços de caçadores e coletores, convivendo entre si ou em guerras, ou ensinando e submetendo os habitantes da região ocupada.
Não se pode pensar em agricultores "respeitando" a cultura de coletores, aceitando seu próprio desenvolvimento sócio-econômico, aguardando que o crescimento de suas forças produtivas os levasse a se tornarem também plantadores e criadores... Como toda grande revolução da humanidade, esta também teve seus arautos e corifeus, bem como sua massa de cooptados e subjugados.
A revolução agrícola torna-se quase irresistível. Seu avanço, a partir de poucos focos difusores, atinge áreas cada vez mais extensas, cercadas por contornos marginais, como diz Darcy Ribeiro. Esses contornos vão diminuindo a ponto de se tornarem simples pontos esquecidos pelo avanço da História.
Isso é bom? Isso é mau?
O fato é que a revolução agrícola paulatinamente destrói formas de existência anteriores, e os povos que se mantêm coletores são poucos e facilmente assimiláveis às idéias da revolução, quando atingidos.

 Começa a “criação”

O homem aprendeu antes a plantar, a domesticar os animais e criá-los, ou ambas atividades surgiram de maneira simultânea? Fazemos parte da corrente que acredita ter a agricultura precedido à criação. Ainda hoje há tribos de agricultores que não possuem animais domésticos e temos registro de grupos que aliavam a agricultura à caça, enquanto não se tem notícia de criadores que desconheçam a atividade agrícola.
Gordon Childe imagina ter se iniciado a criação a partir de alguma seca prolongada no Oriente Médio. Assim, animais que viviam adequadamente com uma baixa precipitação de chuva teriam ficado em situação desesperada, sem água, tendo a necessidade de procurar um oásis em busca de algum alimento ou líquido. Lá já estariam os animais predatórios - em busca de água e caça - e o próprio homem. Sendo o homem agricultor, é possível imaginá-lo permitindo que os animais pastassem em seus campos já colhidos e se alimentassem das hastes de cereais que ficavam no chão. Fracos demais para fugir e magros demais para servirem de alimento, carneiros e bois instalavam-se e eram aceitos pelos homens que teriam estudado seus hábitos, expulsando leões e lobos e eventualmente até lhes oferecendo alguma sobra de cereal como alimente complementar.
Em troca, os animais teriam sido domesticados, habituandose à presença do homem, confiando nele (no que cometeram um evidente erro de avaliação)...
O gado confinado funcionava como uma reserva de caça, no início. Aos poucos o homem teria estabelecido critérios no abate dos animais. Sem alarde, teria passado a abater apenas o necessário à sua alimentação. Preservando os mais dóceis e matando os não-domesticáveis, ia promovendo uma criação seletiva.
Ao chegar novamente o momento de plantar, alguns agricultores teriam simplesmente expulsado os animais. Outros, porém, já conhecendo seus hábitos, levavam-nos a locais onde havia abundância de água e alimentos, impedindo o ataque de animais selvagens, deixando-os tranqüilos com relação à suasobrevivência. Assim, aos poucos, o rebanho teria passado a ser não apenas domesticado, mas verdadeiramente dependente do homem.
Em alguns casos esse processo não teria dado certo porque o animal escolhido não seria domesticável, pela sua própria natureza. Mas em outros, o sistema teria se aperfeiçoado a ponto de mostrar ao homem outras vantagens da criação entre as quais o esterco, que ele havia aprendido a utilizar para adubar seus campos e conseguir maior produtividade; e ainda o leite, transformado num alimento muito importante, com a grande vantagem de não exigir a morte do animal.
Mais tarde, o couro passa a ter grande importância em alguns grupos e o pêlo de algumas espécies, como a ovelha, passa a desempenhar significativo papel na economia de vários grupos.
Em alguns casos a criação continua sendo atividade complementar: pequeno número de animais, alimentados por pastos naturais em volta do aldeamento e por restos de colheita em diferentes épocas do ano. Com jovens não muito úteis para outras atividades atuando como pastores, a vida econômica do grupo não sofre muitas alterações, continuando baseada na atividade agrícola organizada.
Poderia ocorrer, entretanto, o crescimento do rebanho, exigindo algumas definições. Nesse caso seria necessário promover o desmatamento de uma área, transformando mato e floresta em pasto.
Eventualmente, seriam plantadas determinadas espécies exclusivamente para alimentar o gado. Poderia ocorrer também uma migração de parte da população, atrás do gado que caminhava em busca de pastos verdejantes. Em alguns lugares uma pequena fração da comunidade migra, mas em outros a maior parte da população acompanha o gado, o qual deixa de ser uma atividade complementar, tornando-se a mais importante base econômica do grupo. É provável que esta tenha sido a origem de tribos e povos criadores.
O fato de a criação ter existido ou existir quase como atividade única em povos da Arábia ou da Ásia Central não significa, portanto, que eles não tenham passado pela revolução agrícola antes do início de sua atual atividade pastoril.
De qualquer forma, é difícil estimar a data do início de sua atual economia. Vasilhas de couro em vez de potes de cerâmica e tendas de couro em vez de paredes de alvenaria não deixam resquícios que possam fornecer base aos arqueólogos. Vale, nesse caso, a capacidade de dedução a partir de casos semelhantes. E, Dor que não, uma boa dose de imaginação.